Enviado pelo jornal de que esta seria minha última poste de Turismo, impossível não pensar nesta trajetória desde minha estreia em abril de 2015.
A proposta do logo editor-executivo (hoje diretor de Redação) Sérgio Dávila era de unir minha rotina de viagens ligadas à gastronomia (para saber cozinhas e bebidas pelo mundo) ao olhar do turista. E foi mais ou menos assim. No primórdio.
Mas logo comecei a me desgarrar. No papel de crítico gastronômico que sou há décadas, eu me impunha uma disciplina de isenção jornalística e estudo objetiva (postura que se tornou uma marca registrada e até, ouso expressar, uma escola). Mas uma vez por quinzena, uma vez que historiador, me senti mais livre para dar vazão à imaginação, tanto no teor quanto no estilo. Que jocoso (e que consolação!) me sentir menos jornalista e mais redactor…
Em pouco tempo, “turismo” foi virando um pretexto para o texto. Uma espécie de Hitchcock de minhas crônicas: assim uma vez que o cineasta aparecia por alguns segundos em seus filmes, em muitos dos meus textos o “turismo” era um coadjuvante, aparecendo unicamente de passagem.
Verdade que muitas vezes havia um indumentária concreto muito ligado ao tema que ocupava a poste. Mas sabendo que nas páginas do caderno já havia reportagens circunstanciadas sobre o ponto, frequentemente eu resvalei para outras áreas do conhecimento ou do sentimento humano.
Cartagena ou Guadalajara viravam pretexto para falar de García Márquez e Juan Rulfo. Um exílio em Santa Catarina ou viagens clandestinas a Paris foram motivos para criticar a ditadura militar. Uma insônia produzia a reflexão sobre a viagem ao inconsciente. A quase fanatismo momentânea em Londres remeteu à especulação sobre a cabeça anglo-saxã.
Às vezes me questionava: será que era isto que o leitor —e mesmo meus colegas editores— esperavam? Ou deveria ser mais convencional? Na incerteza, seguia em frente, até mesmo criando histórias ficcionais de paixão (mas –para manter a presença hitchcockiana do turismo— elas se passavam em outros países…).
As dúvidas sobre a verosímil inadequação dos textos se dissiparam quando recebi, da minha editora, um email relatando comentários do diretor do jornal, Otavio Frias Filho (1957-2018), sobre minha colaboração: “Otavio liga para elogiar as colunas (…). Acha que são textos finos, inteligentes, que ele se esmera em ortografar, que está no veio visível e explorando muito”.
É sempre bom ser elogiado por quem paga pelo seu trabalho. Mas o que me deixou lisonjeado foi que Otavio, além do jornalista que marcou a prensa brasileira, foi um dos intelectuais mais refinados do país –e, se ele admirava meus escritos, alguma coisa de bom deveriam ter.
Aliás, a última vez em que falei com ele foi três meses antes de sua morte, já doente. Ele me ligou para expressar que acabara de ler, no jornal recém-impresso, minha poste que iria para as bancas no dia seguinte (com relatos sobre a Patagônia argentina). Elogiou meu trabalho, e me leu o trecho onde eu dizia que a “merluza negra tem mesocarpo antemanhã que se desmancha, com sabor salino tão simples quanto seus delicados flocos de porcelana”, acrescentando: “ler isto me abriu o gosto, o que neste meu momento de fastio é maravilhoso”. Fiquei muito tocado.
Foram oito anos neste quina do jornal. Mas viagem é movimento –e vocês me encontrarão deslocando-me alguns centímetros para lá ou para cá por estas páginas, mormente em Comida e Turismo. E sempre hipotecado em treinar uma escrita cada vez mais inspirada, no teor e na forma, uma vez que procurei refinar ao longo da revigorante experiência de colunista que a Folha me proporcionou.
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