Em frente a uma fileira sem termo de oliveiras, Gabriel Guardia, 50, lembra a imagem dos campos cobertos de neve. “Quando eu era menino, era impossível plantar em algumas áreas”, conta o enólogo, que hoje trocou o cobertor que usava naquela estação pelo ar-condicionado na hora de dormir.
Gabriel cresceu em Mendoza, capital do vinho e do óleo argentinos, que, assim uma vez que ele, tem sentido as mudanças climáticas na pele. Situada sobre um deserto aos pés da Serrania dos Andes, a cidade já convive há tantos anos com a falta de chuva que nem labareda mais sua situação de seca.
“Entendemos que estamos numa quesito de estresse hídrico, porque já são 12 anos assim”, diz Sebastián Melchor, coordenador da Filial de Mudança Climática da província. A subida das temperaturas tem reduzido a neve que deveria desabar no supino das montanhas no inverno e liquefazer na primavera e no verão.
A região depende desse degelo para encher os rios, inundar os reservatórios, abastecer a população e irrigar as plantações, também castigadas por eventos extremos cada vez mais longos, intensos ou frequentes. Por isso, algumas das melhores vinícolas e olivícolas do mundo têm precisado se conciliar.
Passaram a antecipar colheitas, plantar em áreas cada vez mais altas em procura de climas mais frescos e variar os tipos de uva para preservar a qualidade das bebidas. Ampliaram ainda o sistema de regadura por gotejadores e a impermeabilização de canais a termo de evitar a perda de chuva —finalmente, cada taça de vinho consome 120 litros do recurso.
“Toda a fenologia [o ciclo da planta] se adiantou em 15 dias, eu diria, nos últimos 30 anos. Eu terminava de colher em maio, agora em 15 de abril já acabou”, afirma Alejandro Vigil, enólogo-celebridade da Catena Zapata, eleita a melhor vinícola do mundo em julho e repleta de brasileiros nas visitas agendadas.
Sua imponente sede em forma de pirâmide maia está localizada em Luján de Cuyo, região mendocina que fica a 950 metros supra do nível do mar. Mas os melhores vinhos não saem dali e, sim, de uma espaço 70 km ao sul e a 1.500 metros de profundidade, onde a vista da serrania fica cada vez mais próxima. É o Vale do Uco.
“No início da dez de 1990, me disseram: tem um louco que vai plantar lá em cima, a uva não vai amadurecer. Hoje são mais de 3.000 hectares cultivados ali, 80% da produção”, estima Vigil, ponderando que a produção argentina ainda não sofre tanto quanto a europeia, com verões infernais, incêndios florestais e enchentes bíblicas.
“A temperatura nessa espaço antigamente era superextrema, muito fria, agora não é tanto”, diz o também enólogo Gonzalo Carrasco na centenária Rutini, uma das primeiras a plantar no sítio. Ele conta que a mudança de profundidade também atendeu a uma demanda recente do mercado por vinhos mais frescos e ácidos, não tão fortes.
Com a redução da neve, a região, porém, está chegando ao seu limite. A vinícola teve que aprofundar seus três poços nos últimos anos em procura de chuva. Para isso, é preciso passar por um rígido controle do governo provincial, que também é quem concede e serpente o “recta de rega” aos produtores de pacto com o tamanho das plantações.
Gabriel, gerente da olivícola Laur do início deste texto, saca o celular do bolso e mostra a mensagem que recebe semanalmente no WhatsApp. “Comprovante de vez: de segunda às 10h30 até quinta às 7h30”. Uma vez que é terça-feira, a chuva está correndo pelas valas abertas que vêm pela rua, beirando a lajedo, até entrar nas oliveiras.
Mendoza tem um longo sistema de canais que se espalham por toda a cidade, técnica pré-hispânica. Sempre que o prazo determinado para cada propriedade acaba, é preciso ir até a ingressão da propriedade e fechar uma comporta manual, para que a chuva continue descendo pela vala geral até a próxima rancho.
Nesse caminho, porém, muita chuva se perde absorvida pela terreno, por isso o governo e as vinícolas têm priorizado a impermeabilização desses canais com concreto. “Outra mudança é a regadura por gotejamento, muito mais eficiente”, diz Sebastián Zuccardi, enólogo da famosa vinícola que leva seu sobrenome.
Antes se usava a rega por superfície, ou seja,o solo todo era resguardado com a chuva, que se infiltrava. Agora, os novos campos têm mangueiras automatizadas que pingam sempre sobre as raízes das videiras. “Isso não necessariamente economiza chuva, mas a usa de forma mais racional”, lembra Vigil, da Catena Zapata.
Outro grande duelo tem sido as geadas mais frequentes e fora de estação, que podem chegar a 7°C negativos. Quando consegue prever esses eventos, a maioria das vinícolas ainda faz fileiras enormes de fogueiras em volta das parreiras para evitar que as uvas ou brotos congelem, o que pode ser muito poluente.
A vinícola Bodeguer encontrou uma opção usando a técnica dos iglus. Colocam uma malha sobre a vegetal, feita de material de colete balístico, e gotejam chuva sobre ela. “Quando essa chuva congela, faz uma categoria que preserva o calor das videiras”, explica Milagros Vargas, responsável pelo turismo, ponderando que o sistema é muito custoso.
“Estamos voltando aos nossos avós”, diz Veronica Riccitelli, sócia da marca homônima, mais jovem e artesanal, que também tem buscado adaptações. “Cá nós deixamos de ver a vinícola uma vez que monocultura e passamos a vê-la uma vez que biodiversidade, plantando outras coisas junto e descobrindo quais uvas se dão melhor em cada lugar. Se não entendermos a natureza uma vez que um todo, a coisa vai complicar.”
Nos últimos meses, com o início do fenômeno El Niño, a natureza deu uma trégua a Mendoza, aumentando um pouco a neve nas cordilheiras e garantindo a chuva do próximo verão. Mas ainda não é suficiente para restabelecer todos anos de estresse hídrico, afirma Melchor, responsável do governo. “Temos que trabalhar sabendo que a seca e os eventos extremos agora serão uma metódico.”