Eis um lugar referto de contradições e, em certos aspectos, muito parecido com o Brasil. Trata-se do “país mais perigoso do mundo”, segundo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Delito —estudo de 2022 apontou uma taxa de homicídios quase dez vezes superior à média mundial.
A maconha só foi descriminalizada em 2015, e o país é um dos nove da América que criminalizam a homossexualidade. No entanto, conhecida principalmente por sua música, atletas e atrações naturais paradisíacas, a Jamaica é comumente associada à alegria, à diversão e a outros signos positivos, tendo no imaginário social mundial uma boa imagem e, portanto, bom soft power.
Ao chegar ao serviço de êxodo do aeroporto de Kingston, já percebi, logo de rosto, que estava em um país único, em muitos sentidos. A funcionária fez a mim perguntas padrão, porquê o motivo da minha viagem, onde me hospedaria e quanto tempo ficaria na ilhéu, solicitando que eu mostrasse a passagem de volta.
Respondi que escolhi visitar a Jamaica por pretexto da música, e a funcionária logo pediu para que eu dissesse de qual música jamaicana eu gostava, com o objetivo de verificar se eu dizia a verdade. Respondi com nomes de cantores de reggae, mas não foi suficiente. Ainda desconfiada, a funcionária pediu logo para eu referir nomes de músicas de Bob Marley.
Já tendo sido interrogado em outros aeroportos, em experiências bastante desagradáveis, confesso que desta vez não só não fiquei nervoso porquê achei recreativo o teste de boas-vindas. Não bastasse o conhecimento das músicas de Bob Marley ter sido usado porquê critério positivo de idoneidade em um procedimento estatal burocrático-policial, na terreiro principal de Montego Bay testemunhei, dias depois, uma cena também inusitada.
Em uma ação de cidadania, que incluía barracas com materiais de conscientização sobre o HIV, violência doméstica e dengue, a filarmónica da polícia, devidamente fardada, tocava reggae, um gênero musical conhecido por criticar o sistema e a opressão. O reggae não exclusivamente foi institucionalizado pelo Estado porquê também movimenta a indústria do turismo jamaicana.
Principal nome do gênero e jamaicano mais famoso do mundo, Bob Marley morou em mais de uma vivenda na ilhéu e pelo menos três delas podem ser visitadas. A primeira dessas casas fica situada no povoado de Nine Mile, a 88 km de Kingston. Nessa vivenda podemos ver os quartos onde Marley nasceu e onde passou seus primeiros anos de puerícia. É lá também que está seu mausoléu.
A segunda vivenda fica em Trench Town, onde Bob Marley viveu a partir dos 10 anos de idade e onde formou, ao lado de Peter Tosh e Bunny Wailer, o conjunto The Wailers. Trench Town, citada, entre outras, na icônica “No Woman No Cry”, de Vincent Ford, e em “Alagados”, dos Paralamas do Sucesso, é um bairro de classe baixa de Kingston, que abriga conjuntos habitacionais em que famílias muitas vezes viviam apertadas em pequenos cômodos e dividiam áreas comuns, porquê cozinha, banheiro e um recinto medial.
O conjunto onde Marley viveu foi transformado no museu Trench Town Culture Yard. Em seu quarto, vê-se a “single bed” e o “roof” divididos com sua logo namorada, Rita Marley, e citados na romântica “Is This Love”. O roteiro completo inclui um passeio pelo bairro, onde viveram outros ícones da música jamaicana.
A terceira vivenda, provavelmente a mais visitada, fica em Hope Road, uma zona transcendente de Kingston, onde Bob Marley viveu seus últimos seis anos de vida, já porquê um planeta internacional consagrado.
Foi nesta vivenda, antes pertencente a Chris Blackwell, proprietário da gravadora Island Records, que em 1976 Bob Marley sofreu um atentado em meio a uma vaga de intensa violência política entre as milícias do logo primeiro-ministro Michael Manley e do líder da oposição, Edward Seaga, incidente retratado tanto no filme “Bob Marley: One Love” quanto no documentário da Netflix “ReMastered: Who Shot the Sheriff?”. As marcas de tiros ainda podem ser vistas na parede do quarto.
Foi nessa vivenda que clássicos foram compostos, porquê “Three Little Birds”. A vivenda tem um estúdio e, no incorporado, uma loja de maconha de grife. A visitante pode ser combinada ainda com a ida ao estúdio Tuff Gong, de propriedade de Marley, em outro bairro da capital.
Outro lugar de Kingston importante na história do músico é o Estádio Vernáculo, onde em 1978 aconteceu o “One Love Peace Concert”, justamente com o objetivo de pacificar as relações entre os partidários de Manley e de Seaga. Sob a mediação de Marley, os líderes políticos subiram ao palco e deram as mãos. Ao lado do estádio está localizada a Estádio Vernáculo, onde ocorreu o velório do cantor, em 1981. Em frente a ambos, paira sua estátua.
Muito menos comemorado do que Marley, Peter Tosh também tem seu pequeno museu em Kingston —talvez a principal relíquia exposta seja sua guitarra-metralhadora. Apesar de não ser uma atração turística, interessados podem passar em frente à vivenda onde ele foi assassinado, em 1987, na Plymouth avenue. Já seu túmulo pode ser visitado em Belmont, a 172 km de Kingston.
Para quem se interessa também pelo turismo cinematográfico, a pequena ilhéu de Lime Cay, próxima ao aeroporto de Kingston, foi cenário do clássico jamaicano “The Harder They Come”, que catapultou o reggae e Jimmy Cliff ao estrelato mundial.
Por termo, na zona portuária, fica o Jamaica Music Museum, que exibe instrumentos doados por integrantes das bandas Skatalites e Jolly Boys, lembrando que a música jamaicana é muito mais do que reggae. Herbie Miller, curador, é fã de música brasileira, principalmente de Maria Bethânia.