O vento no reles São Francisco é imponente. A força que empurrava as canoas de tolda no século 19 hoje aplaca o calor de turistas e moradores que vão à orla em procura de lazer, contemplação ou, por que não, um café.
É em uma torre do relógio centenária no sertão nordestino que se esconde uma das cafeterias com a locação mais impressionante do Brasil.
Construída em 1879, a torre fica na frente da antiga estação de trem de Piranhas (a 270 km de Maceió) e costumava regular não somente os horários de chegada e partida dos trens, mas a vida na cidade. Comércios, igrejas, escolas… todos dependiam do horário indicado no relógio municipal.
Além de ter um meio histórico vivo, habitado e muito preservado, Piranhas é a base para quem quer explorar os cânions do rio São Francisco, uma das formações geográficas mais deslumbrantes do Brasil.
Hoje, o relógio, ainda em atividade, abriga o Nalva Moca, também divulgado uma vez que Moca da Torre. Para chegar até o lugar, é preciso subir uma escada em lesma.
No cimo, o vento que corre pelas janelas faz olvidar que estamos no sertão e cria um microclima deleitável para se passar um termo de tarde.
Por ser uma construção histórica, ela não suporta tanto peso. Assim, no cimo da torre só são permitidas 15 pessoas ao mesmo tempo. Ao pé da escada, há algumas mesinhas para quem quiser tomar um moca enquanto aguarda a vez de subir.
No cimo da torre, cada uma das janelas de madeira emoldura um cenário pitoresco da cidade. Á frente, o rio São Francisco corre, majestoso, por trás da antiga estação ferroviária. É termo de tarde e as pequenas embarcações já repousam na praia. O ir e vir a essa hora é só o das águas.
As janelas à esquerda do balcão revelam as casinhas coloridas do meio histórico da cidade conhecida uma vez que Lapinha do Sertão. Mais ao longe, no cimo, está o mirone secular —por ter uma estátua em “homenagem do povo do século 19 ao povo do século 20”, mas também, de certa forma, secular de secular, por permanecer oposto ao mirone da igreja do Nosso Senhor do Bonfim.
Mas é pela janela da direita que está a paisagem mais impressionante deste termo de tarde. Por trás de uma frondosa amendoeira, há uma colina —enxurro da vegetação seca da caatinga— onde fica o outro mirone da cidade, o confessional, da igreja do Bonfim.
Por trás do morro, o sol, que há poucos instantes exibia seu revérbero nas águas do São Francisco, começa a se esconder. Essa iluminação de termo de tarde projeta um firmamento de cores alaranjadas que viram cor-de-rosa à medida que os ponteiros sobre nossas cabeças avançam.
À mesa, o cenário é muito marginado. O Moca na Prensa experimentou alguns dos quitutes a invitação do estabelecimento. O moca, moído na hora, não é gourmet e tem a intensidade não exagerada típica da região. Fabricado pela Santa Clara, uma das marcas mais fortes no mercado nordestino, ele é servido em versões espresso e coado, e ainda compõe bebidas uma vez que a que leva leite vaporizado, uma esfera de sorvete de creme, guloseima de leite feito na lar e farofa de mendubi crocante —uma bela releitura do clássico affogato (R$ 15).
As comidinhas também fazem jus à locação. Elaboradas pelo chef Antônio Mendes Jr., responsável por outros três empreendimentos na cidade, incluindo o Nalva, restaurante mais sofisticado do lugar, elas vão desde a quiche de frango muito temperado (R$ 12) à empada de camarão com recheio saboroso e úmido (R$ 19).
Para finalizar, um guloseima popular muito alagoano: a tortelete de leite condensado (R$ 8), com volume fina e generosamente recheada.
As massas, aliás, são tão leves que os pedaços que caem no prato às vezes são levados pelo vento, esta companhia indelével da cafeteria.
Para quem procura comidas mais robustas e clássicos nordestinos muito executados, o Moca da Estação, do mesmo chef, fica a poucos passos dali e serve itens uma vez que a tapioca recheada com bastante mesocarpo de sol na nata e até cuscuz e pratos executivos.
Enquanto isso, do cimo da torre, o anoitecer destaca a silhueta da igrejinha do Bonfim nas alturas, com luzes que começam a atear, exibindo o caminho de 256 degraus que levam até ela.
E assim se contempla o pôr do sol na torre do relógio. Entre o mirone divino e o secular, margeado pelo São Francisco e sua força que desafia Deus e o Diabo. E sobre a mesa repousa o moca. Bebida outrora classificada uma vez que resultado do demônio, chegou a ser banida na Europa no século 16, mas depois encantou até o papa.
O sombrear chega junto com as 18h, e o relógio começa a fustigar —ele continua, enfim, em atividade. Hora da Ave Maria, ou hora de debutar a aproveitar os prazeres mundanos do sábado à noite.
Faço o sinal da cruz e dirijo-me à cachaçaria na rua inferior.
E o rio São Francisco segue baforando seu vento bestial sertão afora.
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