“Para quem é, bacalhau basta.” Leste é um ditado que meu pai aprendeu na puerícia e gostava de repetir para a família no lida de provocar espanto –uma vez que se a mesma piada contada milénio vezes ainda tivesse alguma perdão.
O provérbio diz saudação a uma pessoa tão reles que, para ela, qualquer coisa está de bom tamanho. Até mesmo bacalhau.
Uma completa baboseira quando se sabe que o bacalhau é um alimento caro, reservado para ocasiões especiais uma vez que a Semana Santa. Era essa a dissonância que meu velho pretendia jogar no ar para os filhos.
Tínhamos uma situação muito dissemelhante quando o pai crescia, nos anos 1930.
A refrigeração de vitualhas ainda era coisa para poucos. A mesocarpo que se encontrava no mercado era charque, porco salso, linguiça defumada, camarão sedento. Não havia uma vez que se entregar peixe oceânico fresco em Lençóis Paulista, a 370 km de Santos (pelas rodovias que só seriam construídas décadas depois).
O drama da conservação da comida se repetia nas cidades maiores. Gelo era valioso, um luxo. Músculos e peixe frescos, só para quem podia remunerar muito. Para os pobres, bacalhau.
É fácil entender por que bacalhau era comida de gente pobre. Se você o observar com um olhar desapaixonado, verá um naco de peixe sedento e fedorento, zero deleitoso.
Requer muito trabalho e qualquer talento transformar o bacalhau numa repasto digna. Os portugueses nos transmitiram esse savoir-faire. Um bacalhau bem-feito é um pouco absurdamente bom.
Tão bom que a demanda pelo peixe cresceu até ameaçar a existência do Gadus morhua, nome científico do dito-cujo. Escasso, tornou-se custoso; custoso, tornou-se cobiçado: é nesse ponto que começa a rodopiar o moto-perpétuo da indústria do luxo.
Meu pai assistiu ao vivo à subida social do bacalhau. Para ele, não tinha sentido o valor que o peixe sedento e fedido adquiriu ao longo do século 20.
Aos olhos de um ímpio (eu), o aburguesamento do bacalhau expõe uma curiosa incoerência no hábito de comê-lo na Semana Santa.
As restrições alimentares impostas na Quaresma têm por finalidade a penitência. O ideal seria praticar períodos de jejum, mas logo o clero percebeu que era baixíssima a adesão a dieta tão radical.
Assim, foram sendo liberadas algumas categorias de vitualhas: pão, vegetais e, por termo, peixe –sempre fortíssimo na simbologia cristã.
Permaneceu o veto às outras carnes, pois remetem à opulência e à celebração. O festim do cordeiro e do porco ficava reservado para a Páscoa, quando a vida retomava o compasso normal.
O bacalhau se encaixou perfeitamente no ritual de penitência dos tempos passados. Um humilde pedaço de peixe sedento para sustentar o corpo enquanto o espírito sofria.
Agora sofre o bolso de quem, para manter uma tradição desviada do sentido original, faz questão de bacalhau na Semana Santa. O bacalhau virou a abundância, a ostentação e a alegria que os padres se esforçaram para proibir enquanto o Cristo está morto na cruz.
Eu, que espio pelo lado de fora, acho até risonho.
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