Início Turismo A gastronomia construída sobre fake news – 01/03/2024 – Cozinha Bruta

A gastronomia construída sobre fake news – 01/03/2024 – Cozinha Bruta

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Você provavelmente já escutou que a feijoada brasileira foi criada por trabalhadores escravizados, com os sobras de mesocarpo que a casa-grande lhes destinava: ouvido, rabo e pé de porco.

Balela. Papo furado. Invenção sem pé (de porco?) nem cabeça. Os ricos daqueles tempos só comiam lombinho fresco no dia do abate do bicho. As carnes restantes eram salgadas e defumadas para consumo horizonte, e aí se incluíam as partes que hoje consideram-se inferiores.

Não sobrava mesocarpo alguma para os escravos, essa é a verdade.

Há décadas que ouço e leio a refutação dessa mito da feijoada, mas ela subsiste. Volta e meia aparece um chef de cozinha ou participador propagando fake news sobre nosso prato pátrio.

Por essas e outras, cai muito muito a iniciativa de três historiadores que se dedicaram a pesquisar seriamente a origem de pratos famosos: o projeto Comer História, objeto de reportagem da Folha na última terça-feira (26).

Tirar informação da própria ouvido –o orifício permitido nesta leitura familiar– rende histórias fabulosas, muito mais empolgantes do que a veras.

Esta, por sua vez, tem nuances que dificultam a construção de uma historinha palatável. Também é enxurrada de lacunas que impedem a montagem completa do quadro. Faltam muitas peças do quebra-cabeça.

Se reconstituir a sequência de fatos de uma guerra fartamente documentada já é dificílimo, imagine deslindar o que se passava nas cozinhas habitadas por gente analfabeta.

A culinária sempre foi transmitida pela tradição verbal, enxurrada de superstições e idiossincrasias e dogmas que ninguém ousava contrariar.

Por exemplo, havia (há) uma crença mais ou menos generalizada de que grelhar um bife em temperatura muito subida “sela” a mesocarpo. Ou seja, cria uma espécie de casca que impede a perda de umidade.

Totalmente falso, e nem é preciso estudar física para verificar. A mesocarpo diminui, perde peso, e quase todo o peso perdido é de chuva (que você consegue ver evaporando na placa).

É desanimador que tais mitos sobrevivam em pleno 2024, quando o entrada ao conhecimento já se tornou corriqueiro.

Cozinheiros ainda sobrevalorizam o estágio empírico e os ensinamentos de seus mentores, que aprenderam com mentores mais velhos. Tá manifesto, é logo que se perpetua um ofício, mas dá para apurar um pouco o esquema.

E assim você liga a TV e vê um chef famoso aconselhando a misturar óleo à manteiga para não a deixar queimar.

É um pouco que foi repassado de geração em geração, desde sempre, apesar de nunca ter funcionado (os sólidos da manteiga se degradam no calor extremo, com óleo ou sem óleo).

De volta à história da feijoada, é o tipo de coisa que surge na orelhada, numa mistura de sofisma com chuto puro e simples.

Hoje em dia rabo de porco é comida de pobre, coisa que dá nojinho em gente rica. A gente preenche as lacunas da história com a imaginação e conclui que a feijoada nasceu na senzala.

Não interessa que em Portugal (por eventualidade, o país que colonizou o Brasil) haja um prato muito tradicional de feijões cozidos com mesocarpo de porco (por eventualidade, ele se labareda feijoada).

Só muda a cor do feijoeiro.


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