No meu natalício de 10 anos, morando numa cidade do interno, ganhei de um vizinho mais velho um LP que quase furei de tanto ouvir: “Fruto Proibido”, de Rita Lee & Tutti Frutti. Me apaixonei por tudo ali: pelo som, pelo que ela dizia nas letras, pelo rosto dela, pelo cabelo, pelas roupas, por ouvir o mesmo disco milénio vezes e dançar, dançar, dançar, pelo que a música podia ser.
Rita foi acompanhando várias transições na minha vida. Do término da puerícia, quando deixei de ouvir Saltimbancos e Vila Sésamo para inaugurar a ouvir rock, à juvenilidade, quando surgiu “Lança Perfume” e todo mundo só ouvia isso.
Foi com uma fita K7 com minha seleção de músicas favoritas que embarquei para um intercâmbio de um ano nos Estados Unidos. Mesmo tendo sido apresentada a muitas bandas incríveis (ah, os anos 80!), Rita Lee nunca saiu do meu hit parade. Minha “irmãzinha” americana, Heather, também curtia ouvi-la. Entrava no meu quarto pedindo para eu tocar “Baby Cat, Mommy Cat”, que era uma vez que ela entendia “Muito Me Quer, Mal Me Quer”.
Voltei para São Paulo aos 16 anos, tendo de deliberar o que faria da minha vida e me sentindo meio perdida no espaço. Antes de entrar na faculdade de jornalismo, fiz a primeira apuração da minha curso: descobri o endereço do pai da Rita Lee, dr. Charles Jones, e decidi armar o violação perfeito. Me fazer notar por ela.
A moradia, na Vila Mariana, era ideal: tinha um muro superior na frente.
A quadrilha era formada por mim, pelo Beto e pela Solange. Agimos de madrugada. Ele dirigiu o sege. Ela ficou no banco de trás, de antena ligada para dar o alerta caso surgisse a polícia, um vizinho ou qualquer movimento na moradia. Desci sozinha, com a lata de spray na mão, e fiquei diante do muro branco que seria o meu mensageiro.
Escrevi com a melhor letra que a pressa, o pavor, a inexperiência com a tinta spray e o tremor nas mãos, e no resto do corpo inteiro, me permitiram: “Rita, pra você, a facilidade do gato e o clarão da estrela”.
Tive chance de recontar isso para ela uma vez, no camarim, depois do show “Yê Yê Yê de Bamba”, numa moradia noturna histórica na quadra, em Moema. A playlist misturava Beatles com o seu próprio repertório, voltando até Os Mutantes. Era um show muito roqueiro, com uma filarmónica da pesada. E ali estava eu, 19 anos depois da pichação, assumindo a autoria dela. Rita arregalou os olhos azuis e gritou: “Robertoooo!”. Ele se aproximou e ela me apontou: “Foi ela que pichou o muro da Joaquim Távora”. Ele arregalou os olhos também, e os dois me abraçaram ao mesmo tempo.
Eu ainda estava zonza daquele amplexo quando Rita me convidou para sentar e me apresentou ao cão schnauzer Mike. Ali no camarim, para quase ninguém ver, eles cantaram juntos. Rita puxava o quina e Mike entrava uivando detrás.
Essa noite memorável virou pilastra da Barbara Gancia na Folha. Nós éramos namoradas e ela estava comigo naquela noite. No dia seguinte, 1º de março de 2002, esse encontro, e minha frase, saíram publicados no jornal (tenho o recorte na parede até hoje). O título era: Bucicleide conquista o coração de Rita Lee. Bucicleide era a personagem usada pela Barbara uma vez que protagonista de todas as histórias extraordinárias que ela queria recontar na pilastra. Naquele dia, eu fui a Bucicleide com muita honra.
No dia seguinte, foi a vez da Rita provar sua gratidão. E fez com a sua assinatura: mandou entregar na nossa moradia um aquário com um peixe beta (aquele de recontro) que foi batizado de Ozzy Lee de Roble Ribeiro Gancia. Por instrução da Rita, Ozzy ficou no meu banheiro, e eu adorava aquela presença bela e silenciosa (presente da Rita Lee!), que durou alguns meses. Fiquei tão triste quando ele morreu que a Barbara brincou: “Da próxima vez, pede para a Rita te dar uma tartaruga”.
Mas, no fundo, eu sabia que minha conexão com a Rita era anterior ao peixe. A minha frase tinha completado a sua tarefa com louvor. Só que não. Ela voltou a chegar em diversas ocasiões. Foi transcrita em uma das biografias da Rita Lee. Foi citada no musical estrelado pela Mel Lisboa.
E, mais recentemente, fui surpreendida mais uma vez pelo meu escrito de 40 anos detrás! No dia 1º de outubro de 2021 (sei a data exata porque está lá no meu Instagram, @analurib), fui ver a exposição sobre a Rita Lee no MIS. No galeria de ingressão do museu, na primeira parede da exposição, lá estava a minha frase, saudando os visitantes.
Naquele dia, vi que meu coração está bom: balancei, mas não caí. Nem morri de emoção.
Mas me desculpa, Rita: agora é dissemelhante. Contrariando os seus versos na música “Chegadas e Partidas”, do seu “Fruto Proibido”, que mexeu tanto com aquela moço de 10 anos, vou sofrer com essa despedida.